Segundo o documento, “uma decisão sensata de reabertura exige a certeza quanto à estabilidade dos números relativos aos critérios científicos indicativos, e, ainda, a previsão de um plano concreto e efetivo de testagem da população e medidas de vigilância epidemiológica, os quais não foram contemplados nem no decreto estadual nem no municipal".
Há a possibilidade de ação judicial e "lockdown" caso a taxa de transmissibilidade da Covid-19 não diminua.
Confira a íntegra da nota:
- O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE e o MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO dirigem-se à sociedade potiguar para se manifestar sobre a reabertura da economia.
- No dia 23 de junho de 2020, os ramos do MINISTÉRIO PÚBLICO neste Estado recomendaram ao governo estadual e a todos os prefeitos municipais que a retomada das atividades econômicas somente seria segura se fosse observada desaceleração da taxa de transmissibilidade da COVID-19 de maneira sustentada, e a ocupação dos leitos públicos de UTI não fosse superior a 70%, nos termos do art. 12,§1º, do Decreto Estadual nº 29.742/2020.1
- A Governadora recebeu a Recomendação e comprometeu-se a cumpri-la, conforme ofício número 513/2020-GAC, enviado em 23.06.2020, a exemplo do prefeito de Natal/RN.
- No dia 29 de junho de 2020, a Governadora do Estado publicou a Portaria Conjunta nº 007/2020-GAC/SESAP/SEDEC, autorizando a reabertura inicial e gradual da economia, sob o argumento de que o Comitê Científico estadual teria recomendado o fim do isolamento social, conforme coletivas de imprensa e mensagens em redes sociais da Governadora e de representantes do governo, de conhecimento público. No mesmo sentido seguiu o prefeito de Natal/RN.
- A Recomendação do Comitê Científico, porém, somente foi publicada no dia seguinte, apresentando dados ainda significativamente preocupantes quanto à situação no Estado do Rio Grande do Norte, especialmente em relação à taxa de contágio e ao número de leitos críticos de UTI. Além disso, os cientistas foram claros ao dizer que não seria ainda o momento indicado para a reabertura da economia e o fim do isolamento social.
- O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, então, oficiou ao Comitê Científico para que explicasse se, de fato, havia recomendado a reabertura, já que: (a) a Recomendação foi publicada após a decisão do Governo de retomar as atividades econômicas (de modo que não poderia ser usada para fundamentar a decisão), e (b) na própria Recomendação do Comitê Científico consta não ser o momento adequado para o fim do isolamento social.
- A resposta foi fornecida no dia 02.07.2020, assinada pelo Secretário Estadual de Saúde, falando em nome do Comitê Científico local, alegando, em suma, que não foi possível garantir o isolamento ideal, que houve diminuição na taxa de transmissibilidade e que o novo critério para ocupação segura de leitos teria passado de 70% para 80%, além de haver perspectiva de abertura iminente de novos leitos.
- As razões que justificaram a Recomendação Conjunta do MP no dia 23.06.2020 ainda persistem, exatamente porque a taxa de transmissão se mantém alta2, a ocupação de leitos críticos é de 90% (noventa por cento) da capacidade e a fila de internação não foi reduzida de forma segura3.
- Em razão da falta de leitos, 2494 pessoas perderam suas vidas na fila de regulação. Em estudo realizado pelo LAIS-UFRN5, publicado em 12 de junho de 2020, fica evidente que a redução do isolamento social durante a pandemia em Natal, Parnamirim e Mossoró foi fator decisivo para o aumento do contágio e do número de mortes.
- Este quadro não foi alterado da semana passada para hoje. A taxa de transmissibilidade se mantém alta, o isolamento social está muito aquém do recomendado (principalmente em razão da deficiência de fiscalização), a taxa de ocupação de leitos está acima de 90% da capacidade e a expansão anunciada dos leitos ainda não é uma realidade.
- Portanto, a decisão de reabertura das atividades econômicas tomada pelo Estado do Rio Grande do Norte e pelo Município de Natal/RN não foi respaldada por dados científicos consistentes. É necessário que a sociedade compreenda que:
a) a taxa de contágio continua alta (no Rio Grande do Norte cada pessoa contaminada, ainda que assintomática, contagia outras duas pessoas);
b) os leitos de UTI ainda não são suficientes para a demanda, que se mantém alta;
c) ainda que haja leitos, há deficit de medicamentos anestésicos e relaxantes musculares necessários para o procedimento de intubação;
d) o número de mortes no Brasil continua alto (cerca de mil mortos por dia), o que coloca o Brasil no pior lugar no ranking mundial quanto a esse critério de análise. - Por outro lado, o Boletim número 09 do Comitê Científico de Combate ao coronavírus do Consórcio do Nordeste, de 02 de julho de 2020, reprova qualquer plano de reabertura da economia. Conforme relata o documento, há uma forte aceleração do processo de interiorização da pandemia em todo o Brasil, com possibilidade concreta de ocorrer o que foi designado como “efeito bumerangue”: o aumento de casos no interior do Estado, já percebidos nos boletins epidemiológicos diários do Rio Grande do Norte, gerará um inevitável deslocamento de pacientes em estado grave para capital.
- Há uma tendência inequívoca de que a capital se depare com uma “avalanche” de casos graves, advindos do interior, situação que voltará a produzir uma sobrecarga dos seus sistemas hospitalares, ameaçando-os com um colapso em um intervalo de tempo muito curto. Repita-se, a ocupação dos leitos críticos na data dessa nota é de cerca de 90% dos leitos disponíveis.
- O Estado do Rio Grande do Norte e o Município e Natal/RN, seja por falta de fiscalização, seja por falta de maiores esclarecimentos à população, seja por falta de testagem consistente, exibem curvas de crescimento exponencial mantidas há vários dias, ao contrário de Estados que mantiveram períodos de isolamento mais rígidos em suas capitais, como Ceará, Pernambuco e Maranhão, que exibiram uma desaceleração significativa do crescimento de casos.
- Experiências de relaxamento açodadas do isolamento social em várias cidades do país, sem o uso de critérios epidemiológicos objetivos indicados, demonstraram ser catastróficas na gestão da pandemia, resultando em decisões dos governantes de retorno ao isolamento, inclusive de forma mais rígida, como bem advertiu o Comitê Científico do Consórcio Nordeste:
“De qualquer maneira, com um crescimento de casos da ordem de 71% em 14 dias, taxa de ocupação de leitos de UTI no máximo (100%) ou próximo disso, o comitê advertiu não entender quais critérios epidemiológicos e clínicos têm sido usados pelo comitê científico do RN, apoiado pelo governo estadual, bem como a prefeitura de Natal, para justificar uma reabertura, mesmo que gradual, de lojas e outras atividades econômicas na capital do Estado. Basta analisar o que ocorre neste momento no estado do Texas no EUA para verificar que qualquer relaxamento prematuro do isolamento social em cidades que ainda não controlaram a pandemia, como é o caso de Natal e também Mossoró, invariavelmente traz consigo efeitos desastrosos. No caso específico de Natal, a ocorrência de um fluxo de casos graves, provenientes do interior do estado, pode gerar um colapso completo do sistema hospitalar da cidade. Vale ressaltar também que pelo menos um município da região metropolitana de Natal, São Gonçalo do Amarante, ultrapassou o nível crítico de 1.000 casos por cem mil habitantes. A análise realizada no dia 29 de junho comprova que a pandemia de coronavírus atingiu todas as regiões do estado, uma vez que as 5 cidades identificadas como tendo o maior crescimento de casos estão distribuídas por todo o território estadual: Extremoz (grande Natal), Guamaré (região norte), Mossoró (região oeste), Jucurutu (centro-oeste) e Tibau do Sul (região sul). Embora o Rt de Natal tenha sofrido uma queda, ele ainda é superior a 1. Enquanto isso valores bem mais altos e preocupantes de Rt podem ser encontrados na periferia de Natal (Parnamirim, 1.56, Macaíba, 1.86, São Gonçalo, 1.71), na região oeste (Mossoró, 1.38, Apodi, 1.47) e sul (Caicó, 2.37) do estado. Este comitê não dispõe de qualquer informação sobre a realização de inquéritos soroepidemiológicos no estado e nem do grau de penetração do aplicativo telefônico escolhido pelo estado para monitorar casos de covid19, em detrimento do aplicativo sancionado por este comitê, o MONITORA COVID19, que já superou 200 mil downloads em todo o país.
- A pressão da pandemia, após cem dias de proibição de funcionamento de atividades não essenciais, certamente trouxe um forte impacto negativo na economia, na arrecadação do Estado e dos municípios, nas condições para se efetivar a fiscalização, na manutenção de empregos, o que reflete a dificuldade de uma decisão pelos gestores públicos.
- Porém, não é possível que essa decisão não se apoie em critérios científicos adequados ou se baseie em uma leitura errônea de dados, transmitindo à população a ideia de que o momento seria propício para se iniciar a reabertura econômica, pois as consequências dessa mensagem será o aumento da contaminação e os efeitos danosos daí decorrentes.
- Uma decisão sensata de reabertura exige a certeza quanto à estabilidade dos números relativos aos critérios científicos indicativos, e, ainda, a previsão de um plano concreto e efetivo de testagens e medidas de vigilância epidemiológica, os quais não foram contemplados nem no decreto estadual nem no municipal.
- Além de não prever a testagem, o Decreto estadual de reabertura descumpriu os próprios termos do parecer de aprovação do plano de retomada, pois o documento inicial previa a abertura em 3 ou em 4 fases, ao passo que o novo decreto estabeleceu que “o cronograma de que trata este Decreto será dividido em 3 (três) fases subsequentes de 14 (quatorze) dias cada uma delas”, sendo que a Fase 1 está dividida em 2 (duas) frações”, e entre elas haverá um intervalo de, apenas, 7 (sete) dias, e não mais os 14 (quatorze) dias que foram aceitos pelo documento do Comitê de Especialistas.
- Outro ponto importante, é que a propagação do vírus tende a aumentar se não forem adotadas medidas eficientes de racionalização do transporte coletivo, com o estabelecimento de horários diferentes para abertura e fechamento de estabelecimentos e fixação de abertura por bairros ou regiões, assunto de interesse local que o Estado deveria ter pactuado com os Municípios, antes de iniciar processo de retorno de atividades não essenciais.
- O Comitê Científico do Consórcio Nordeste, que surpreendentemente não conta com um representante do Estado do Rio Grande do Norte, foi enfático, no dia de ontem, ao se manifestar contra a decisão de reabertura:
“Nada menos que uma completa reversão do plano de relaxamento (ou flexibilização) oferecido pelo comitê local do governo do Rio Grande do Norte e da prefeitura de Natal é necessária para evitar que a situação do estado se agrave consideravelmente. Com ocupação máxima de leitos de UTI em Natal e Mossoró, por várias semanas, não é concebível que qualquer tipo de afrouxamento do isolamento seja sequer considerado, muito menos implementado. Ao invés, este comitê continua defendendo de forma inequívoca que medidas mais rígidas de isolamento social e testagem e rastreamento de contatos de pacientes infectados, que deveriam ter sido iniciadas semanas atrás, como sugerido repetidamente, sejam postas em prática imediatamente. Além disso, o C4 recomenda que o governo deveria implementar, de forma imediata, Brigadas Emergenciais de Saúde por todo o estado, estabelecer um programa estadual de testagem, para realização de múltiplos inquéritos soroepidemiológicos, e implementar barreiras sanitárias e mecanismos de rodízio/controle de tráfego de carros particulares e ônibus intermunicipais nos seguintes trechos rodoviários: BR-101, no trecho João Pessoa- Natal, e no trecho Natal-Touros, e na rodovia NatalMossoró. A possibilidade de se estabelecer um lockdown de todo o estado, bem como o fechamento intermitente das fronteiras do estado com o Ceará e a Paraíba também deveria ser considerada imediatamente.”
- Assim, ao tempo em que informa à sociedade potiguar acerca da ausência de dados científicos que respaldem a abertura da economia, e considerando que não há previsão de testagens em grande escala, o MINISTÉRIO PÚBLICO, por meio dos três ramos no Estado, estuda a adoção das medidas cabíveis para garantir o enfrentamento adequado da pandemia no Estado e prevenir maiores, mais graves e irreversíveis danos à população.
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