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domingo, 17 de junho de 2018

O desrespeito à propriedade privada empobrece o sertão nordestino


“Eu sinto raiva porque Deus não acaba com tudo logo; ele destrói tudo devagarinho, pra a gente sofrer aos poucos”.
Essa frase foi dita a mim por um senhor, de aproximadamente 70 anos de idade, que mora numa roça pobre do pequeno município de Terra Nova, no Sertão de Pernambuco. Sem o mínimo romantismo, ele se queixava de que não chove uma gota há aproximadamente 4 anos na região, o que lhe causa fome e sede e aprofunda a pobreza na sua casa e na dos vizinhos.
Esse relato não é um fato isolado. Centenas de sertanejos queixam-se da forte seca a mim sempre que vou a alguma roça cumprir alguma diligência ordenada pelo juiz. No meu trabalho, cumpro mandados judiciais em 11 cidades do Sertão pernambucano, todas assoladas gravemente pela seca, todas marcadas pela pobreza extrema.
A situação é calamitosa, e isso naturalmente mereceu a atenção do Estado. Sob o pretexto de resolver os problemas da estiagem em boa parte do Nordeste, o Governo Federal bancou a chamada Transposição do Rio São Francisco, mega obra que promete retirar água do maior rio da região para distribuí-la às cidades onde não chove. Para muitos sertanejos, naquela época, a obra trazia esperança: enfim, um Presidente da República realmente olhava para o Nordeste. Hoje, o que vejo e ouço dos sertanejos com quem tenho a oportunidade de lidar diariamente é um discurso bem diferente.
Naturalmente, a transposição precisa invadir terras particulares para existir, caso contrário nunca chegaria aos lugares aonde precisa chegar. Isso significa, em outras palavras, que várias pessoas precisam perder suas terras e, em muitos casos, suas casas, a fim de que a obra seja viabilizada.
Eis os fatos: 1) o Sertão vive uma seca pesada, que aprofunda a miséria na região; 2) então, o Estado retira tudo o que o sertanejo tem, a sua terra ou a sua casa, para realizar uma obra caríssima, que já dura 10 anos e não está nem perto de ser concluída, tudo pelo seu bem. Parece incompreensível, mas é a realidade nua e crua.
Pior: como o sertanejo pobre não tem dinheiro para contratar os serviços de um advogado, e, nas 11 cidades onde trabalho, não existe nenhum defensor público federal para fazer a sua defesa, a indenização ínfima oferecida pelo Governo acaba por prevalecer. Toda essa invasão ao direito de propriedade do povo do Sertão é confirmada burocraticamente pela Justiça, que lida com folhas de papel, e não com pessoas.

E tudo isso tem fundamento legal num decreto-lei editado na Ditadura de Getúlio Vargas (Decreto-Lei n° 3.366/1941), que é considerado pelo Supremo Tribunal Federal como plenamente compatível com o nosso Estado Democrático de Direito.
Assim, diante de todo esse quadro, é óbvio que boa parte do povo sertanejo hoje já não tem a visão romantizada de anos atrás. A obra começou em 2006, orçada em 4,5 bilhões de reais, e desde esse ano muita gente miserável perdeu a casa em troca de valores irrisórios. Hoje, em 2015, o Governo Federal estima 8,2 bilhões de custo e promete concluir tudo em 2017 – prazo para inglês ver, pois o que os próprios engenheiros do governo me dizem é que a obra não ficará pronta em menos 10 anos.
Na verdade, o sertanejo que chora a seca hoje também lamenta a perda das suas propriedades. “O governo pode tudo contra gente pobre”, é o que me dizem, e tudo o que se conquistou após décadas de trabalho no semi árido é perdido em prol da transposição. E sou eu quem dou a triste notícia: Seu Zé, essa tua casa de “taipa”, com 1 geladeira, 1 fogão e 3 camas, que tu construíste com o teu suor, apesar da seca que sempre te acompanhou, vai ser derrubada para o teu bem. Mas tu podes contratar um advogado, se quiseres, embora dificilmente ele consiga mudar alguma coisa.
Por todas essas razões é que afirmo, sem medo de errar e sem apego político-partidário absolutamente nenhum, que precisamos repensar as desapropriações em geral no nosso país, as quais não são obra de um governo, mas de uma cultura que deposita no Estado a solução para os problemas da humanidade. Precisamos respeitar o povo sertanejo, o cidadão e a cidadã pobre que têm o seu direito de propriedade e de moradia aniquilado por projetos que não passam de uma ilusão. Nesse caso, não prejudicá-los já é um grande avanço.
O sertanejo é, antes de tudo, um forte, disse acertadamente Euclides da Cunha no século passado. Devemos acreditar nisso, mas não podemos permitir que abusos desse tipo perdurem por tanto tempo. Desapropriações são agressivas e, se não serão extintas tão cedo, precisam ao menos ter limites mais claros.

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